terça-feira, 15 de abril de 2014

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    Vozes ácidas nasciam por entre a negrura, delineavam um cardume de ausências naquele silêncio grave, um fumo eterno escorria, de uma das muitas janelas de pó, que iluminavam o céu estrelado, o olhar novo da tenra serra irradiava a luz, de uma vivência inexistente, percorria-a com dedos firmes, cerrando as pálpebras embrutecidas, deixando-se cair na miragem que o esquecera.
   Olhava o teto seco num esgar de pedra, nas densas ruas crepusculares que erguem as margens do Inferno, fitava todas as coisas com o seu olhar demente, um sorriso plácido rasgava o rosto espinhoso, que o envolvia pelo romper da aurora, matutava remotamente sobre coisa nenhuma, evocando cânticos perenes que nasciam na neblina, gemendo sons que eram imediatamente colhidos pelo púrpura estelar, abrilhantado a pele do seu corpo astral.
   Seus dedos martirizavam-se, no poço oblíquo do jardim, olhos cansados marginalizavam-se nas simples farpas do pensar, contemplava ali o crescer da vegetação, deitado sobre o chão de veludo fitava o universo, expressões marítimas e indeléveis que assinalavam a sua falta, por entre aquelas saliências de tez opaca que o confundiam.
   Ninguém mais era, senão na falta, senão no valor que as coisas nunca tiveram, era ele mais uma tentativa falhada da existência, era ali naquela imagem de ausências, que o som monocórdio da vida o penetrara e esquecera no seu deitar, era aquele o vácuo de carne que iria morrer juntamente com todo o cosmos, toda uma alegria melancólica morrerá, com o abafar do som das artérias finas do espaço, desenrolam-se novelos de silêncio no rugoso horizonte que compõe um céu mudo.
   Movimentos imaginários atravessam-no, o alecrim fresco florescia no seu sonho, veias sulcadas eram como raízes de uma árvore sem memória, encarava a serra a partir da sua própria paralisação, fontes de água mansa corriam levemente pelos seus cabelos, submergindo a cólera plantada em torno do seu jazigo, vozes aquáticas marulhavam ao sabor do destino.
   Fregueses viçosos tornavam o seu olhar num mistério, um azul franzino cobria toda aquela tosse doentia, materializando um horizonte de cores pálidas, um cabelo ralo de avelã era recortado pelas sagas brancas do tempo, brancura reluzente das manhãs puras de Inverno, espelhadas no teu rosto monótono de feições frias.
    Baloiçava toda um crepúsculo inacabado, pelos ventres da vida, um rosto frio habitava tudo, o banco estava frio como todo o jardim, como afinal todo o Universo…

Sulcos velhos presenciava a infinita face das estrelas, estrelas riam numa demência semelhante à sua, securas brilhavam ao relento, as feridas cicatrizavam na incoerência do espaço…



cê.de.cê






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ƒerdinand d'θrange )∆( padurira.xiv.iv.mmxiv




I



Vem, Noite antiquíssima e idêntica.
Noite Rainha nascida destronada,
Noite igual por dentro ao silêncio, Noite
Com as estrelas lantejoulas rápidas
No teu vestido franjado de Infinito.



Vem, vagamente,
Vem, levemente,
Vem sozinha, solene, com as mãos caídas
Ao teu lado, vem
E traz os montes longínquos para o pé das árvores próximas,
Funde num campo teu todos os campos que vejo,
Faz da montanha um bloco só do teu corpo,
Apaga-lhe todas as diferenças que de longe vejo,
Todas as estradas que a sobem,
Todas as várias árvores que a fazem verde-escuro ao longe,
Todas as casas brancas e com fumo entre as árvores,
E deixa só uma luz e outra luz e mais outra,
Na distância imprecisa e vagamente perturbadora,
Na distância subitamente impossível de percorrer.



Nossa Senhora
Das coisas impossíveis que procuramos em vão,
Dos sonhos que vêm ter connosco ao crepúsculo, à janela,
Dos propósitos que nos acariciam
Nos grandes terraços dos hotéis cosmopolitas
Ao som europeu das músicas e das vozes longe e perto,
E que doem por sabermos que nunca os realizaremos...
Vem e embala-nos,
Vem e afaga-nos.
Beija-nos silenciosamente na fronte,
Tão levemente na fronte que não saibamos que nos beijam
Senão por uma diferença na alma.
E um vago soluço partindo melodiosamente
Do antiquíssimo de nós
Onde têm raiz todas essas árvores de maravilha
Cujos frutos são os sonhos que afagamos e amamos
Porque os sabemos fora de relação com o que há na vida.



Vem soleníssima,
Soleníssima e cheia
De uma oculta vontade de soluçar,
Talvez porque a alma é grande e a vida pequena,
E todos os gestos não saem do nosso corpo,
E só alcançamos onde o nosso braço chega,
E só vemos até onde chega o nosso olhar.



Vem, dolorosa,
Mater-Dolorosa das Angústias dos Tímidos,
Turris-Eburnea das Tristezas dos Desprezados.
Mão fresca sobre a testa em febre dos Humildes.
Sabor de água sobre os lábios secos dos Cansados.
Vem, lá do fundo
Do horizonte lívido,
Vem e arranca-me
Do solo de angústia e de inutilidade
Onde vicejo.
Apanha-me do meu solo, malmequer esquecido,
Folha a folha lê em mim não sei que sina
E desfolha-me para teu agrado,
Para teu agrado silencioso e fresco.
Uma folha de mim lança para o Norte,
Onde estão as cidades de Hoje que eu tanto amei;
Outra folha de mim lança para o Sul,
Onde estão os mares que os Navegadores abriram;
Outra folha minha atira ao Ocidente,
Onde arde ao rubro tudo o que talvez seja o Futuro,
Que eu sem conhecer adoro;
E a outra, as outras, o resto de mim
Atira ao Oriente,
Ao Oriente donde vem tudo, o dia e a fé,
Ao Oriente pomposo e fanático e quente,
Ao Oriente excessivo que eu nunca verei,
Ao Oriente budista, bramânico, sintoísta,
Ao Oriente que tudo o que nós não temos,
Que tudo o que nós não somos,
Ao Oriente onde – quem sabe? – Cristo talvez ainda hoje viva,
Onde Deus talvez exista realmente e mandando tudo...



Vem sobre os mares,
Sobre os mares maiores,
Sobre os mares sem horizontes precisos,
Vem e passa a mão pelo dorso da fera,
E acalma-o misteriosamente,
Ó domadora hipnótica das coisas que se agitam muito!



Vem, cuidadosa,
Vem, maternal,
Pé ante pé enfermeira antiquíssima, que te sentaste
À cabeceira dos deuses das fés já perdidas,
E que viste nascer Jeová e Júpiter,
E sorriste porque tudo te é falso e inútil.



Vem, Noite silenciosa e extática,
Vem envolver na noite manto branco
O meu coração...
Serenamente como uma brisa na tarde leve,
Tranquilamente com um gesto materno afagando.
Com as estrelas luzindo nas tuas mãos
E a lua máscara misteriosa sobre a tua face.
Todos os sons soam de outra maneira
Quando tu vens.
Quando tu entras baixam todas as vozes,
Ninguém te vê entrar.
Ninguém sabe quando entraste,
Senão de repente, vendo que tudo se recolhe,
Que tudo perde as arestas e as cores,
E que no alto céu ainda claramente azul
Já crescente nítido, ou círculo branco, ou mera luz nova que vem,



A lua começa a ser real.



II


Ah, o crepúsculo, o cair da noite, o acender das luzes nas grandes cidades



E a mão de mistério que abafa o bulício,
E o cansaço de tudo em nós que nos corrompe
Para uma sensação exacta e precisa e activa da Vida!
Cada rua é um canal de uma Veneza de tédios
E que misterioso o fundo unânime das ruas,
Das ruas ao cair da noite, ó Cesário Verde, ó Mestre,
Ó do «Sentimento de um Ocidental»!



Que inquietação profunda, que desejo de outras coisas,
Que nem são países, nem momentos, nem vidas,
Que desejo talvez de outros modos de estados de alma
Humedece interiormente o instante lento e longínquo!



Um horror sonâmbulo entre luzes que se acendem,
Um pavor terno e líquido, encostado às esquinas
Como um mendigo de sensações impossíveis
Que não sabe quem lhas possa dar...



Quando eu morrer,
Quando me for, ignobilmente, como toda a gente,
Por aquele caminho cuja ideia se não pode encarar de frente,
Por aquela porta a que, se pudéssemos assomar, não assomaríamos,
Para aquele porto que o capitão do Navio não conhece,
Seja por esta hora condigna dos tédios que tive,
Por este hora mística e espiritual e antiquíssima,
Por esta hora em que talvez, há muito mais tempo do que parece,
Platão sonhando viu a ideia de Deus
Esculpir corpo e existência nitidamente plausível
Dentro do seu pensamento exteriorizado como um campo.



Seja por esta hora que me leveis a enterrar,
Por esta hora que eu não sei como viver,
Em que não sei que sensações ter ou fingir que tenho,
Por esta hora cuja misericórdia é torturada e excessiva,
Cujas sombras vêm de qualquer outra coisa que não as coisas,
Cuja passagem não roça vestes no chão da Vida Sensível
Nem deixa perfume nos caminhos do Olhar.



Cruza as mãos sobre o joelho, ó companheira que eu não tenho nem quero ter.
Cruza as mãos sobre o joelho e olha-me em silêncio
A esta hora em que eu não posso ver que tu me olhas,
Olha-me em silêncio e em segredo e pergunto a ti própria
– Tu que me conheces – quem eu sou...






álvaro de campos




segunda-feira, 14 de abril de 2014




≈ §¡lënc!o ≈